quinta-feira, março 18, 2010

Por mais mil



Nas nossas bodas de carvalho a gente vai cantar "Anyone else but you"da trilha de Juno, "Evolution", da Cat Power com o Eddie Vedder, "Cheek to cheek" e "The way you look tonight" e algum dueto da Disney, provavelmente.

Sim, eu já estou decidindo o repertório que vamos apresentar aos nossos tataranetos no nosso aniversário de 80 anos de casamento. Porque o tempo passa voando e a gente tem que planejar nossos aniversários com um pouco de antecedência.

Estamos completando dois anos, os dois primeiros de infinitos. Que venham os anos, que venha o trabalho, a batalha, os filhos, que venham os netos e a aposentadoria.

Eu não tenho mais medo de dizer que você é minha felicidade, hoje e sempre. Como os velhinhos do Titanic, promessa de dedinho.

sexta-feira, agosto 07, 2009

"Os mundos uivam o próprio canto fúnebre.
e nós somos macacos de um Deus frio".
Karl Marx

Às vezes pequenos acontecimentos possuem um descomunal poder de subverter nossas convicções e derrubar nossos estúpidos castelos de areia. Um pequeno atraso, um pequeno incidente pode se tornar extraordinariamente catastrófico para as ilusões que nos mantêm de pé.
Acordar todos os dias no mesmo horário, vestir as velhas máscaras que, de alguma forma, garantem a estabilidade da ordem social, marchar, dia após dia, estupida e resignadamente para o sacrifício implacável da inteligência, da criatividade, de qualquer resquício de verdade e beleza que ainda exista dentro do peito desses homens - esses pobres homens, eu, você, todos nós. Massas uniformizadas de animais de carga, servimos diariamente a uma máquina cruel que nos torna submissos, hipócritas, ignorantes que fecham os olhos para seus próprios desejos e necessidades, suprimindo qualquer possibilidade de selvageria, de instinto de liberdade - a sobrevivência levada às últimas consequências, em detrimento das experiências que dão sentido ao tempo que passamos nesse mundo. E esse parece ser, de alguma forma, o destino irrevogável de todo homem: eliminar, com impressionante esforço e auto sacrifício, a própria consciência, aquilo que faz com que um homem seja insubstituível, que faz com que sua existência tenha alguma importância sobre o mundo. O homem é o cavalo do homem.
Vejo tanta tristeza, tanto cansaço e desistência, homens iguais, sem rosto, perdedores de tudo, homens incapazes de vencer a própria vida, que jamais lutaram por nada, que se deixaram engolir pelo mundo, homens paralisados de medo - medo do risco, medo da dor, medo da loucura (o medo mais primordial de qualquer ser humano). Medo da enorme responsabilidade que vem junto com a felicidade genuína - a responsabilidade de ter olhos num mundo de cegos. Homens cujas mortes serão sentidas com alívio pela terra, cujas histórias, infinitamente repetidas por inumeráveis gerações de cães, não serão lembradas por ninguém, porque a ninguém importaram: homens que nada mais fizeram na vida que executar tarefas mais ou menos essenciais à sobrevivência de um corpo social, do qual fazemos parte apenas como elementos estruturais substituíveis, cujo fracasso implica nosso fracasso, mas cujo sucesso normalmente não nos diz respeito.
Acontecimentos tão inocentes podem despertar em uma pessoa a consciência do mundo, porém são poucos os que conseguem suportar o peso dessa revelação sem desistir, sem enlouquecer. Sobra apenas a constatação de uma condenação irrecorrível de quase todos os homens à condição de escravos - escravos do dinheiro, da moral, do medo, de Deus - contra a qual nada podemos senão na loucura ou na morte.

quinta-feira, agosto 06, 2009

Como a minha capacidade de escrever foi embora junto com o meu hábito de leitura, vou começar a postar uns textos antigos que encontrei recentemente. Vou ter que editar de leve, mas são extremamente amargurados (foram escritos entre a época que eu trabalhava para uma psicóloga antiética e a época que eu trabalhava com telemarketing para um banco - quando eu ainda fazia psicologia, não bebia, não fumava, nem fazia idéia do que eu queria pra minha vida).



Maaaaas antes disso, eu vou contar o sonho mais bizarro de todos os tempos, que tive essa semana, aparentemente drogada de maracugina (é com G mesmo, viu?). Foi o máximo de aleatoriedade que meu inconsciente atingiu na minha vida, e esse eu DUVIDO que Freud explique.

Eu estava num templo antigo (de civilizações pré-colombianas), e eu só me lembro a partir de quando já começou a ação. Eu estava meio que me escondendo de alguém, ou correndo de alguém, e precisava chegar em um lugar do templo (que mais parecia um restaurante japonês com uma decoração chique) e salvar uma pessoa. Eu estava correndo para salvar essa pessoa.

Acontece que quando eu cheguei lá, eu descobri que essa pessoa a quem eu tinha que salvar era ninguém menos que o Indiana Jones, e que eu tava pegando ele. Mas não o Indiana Jones novo e bonitão, ele velho - foda como sempre, mas velho. (Detalhe: tem mais de seis meses que eu não vejo nada relacionado a Indiana Jones). Não sei por que, o meu ex professor de física por quem eu era apaixonada (e não vejo desde o cursinho, há cinco anos) estava como que numa banca de examinadores (como que decidindo o destino do meu amor Indiana), e ele ficava me olhando com uma cara de decepção.

De repente a banca some e aparecem duas anãs gêmeas. Essas anãs eram a duplicação de uma anãzinha bonita que parece num um episódio de House, acho que segunda temporada (que eu vi tem uns mil anos), uma anã loirinha adolescente, muito bonitinha (e eu CUSTEI lembrar de onde era a anã depois que acordei). Elas me cumprimentaram com um abraço, o Indiana Jones me deu um beijo na boca (e eu pensei no sonho "aaah que doido que é o Indiana Jones, mas ahhhh ele tá tão velho..."), subiu num palco improvisado, pegou uma guitarra e começou a tocar uma música do Johnny Cash e uma das anãzinhas começou a cantar com a voz da Janis Joplin.

Depois do "show", eu me lembrei que eu tinha que encontrar a pessoa que queria matar o Indiana, e eu descobri que era uma tia minha essa pessoa. Eu a encontrei numa parte do templo conversando com minha mãe, que era tipo um jagunço dela. Aí eu capturei minha mãe, e a fiz confessar o que eu queria saber (???). Ela me confessou então que quando eu tive pneumonia em 2007 e fiquei internada, meu cachorro Floquinho (que morreu tem um mês) teve um "entupimento renal", e teve que ser sacrificado (em 2007, não no mês passado). E pra sacrificá-lo, ela o levou para um zoológico, onde ele foi jogado na jaula do gorila, que arrancou seis costelas dele. Eu chorei muito, fiquei morrendo de pena dele (em momento algum passou pela minha cabeça a lembrança de que eu estava lá quando meu cachorro morreu, há um mês, no hospital), desesperada, e o André, que até então não estava presente no sonho, me levou para a porta de uma igreja de uma cidade histórica de Minas, onde ele, mais uma amiga da faculdade, haviam organizado uma missa em homenagem ao Floquinho. E assim terminou o sonho: eu, na porta da igreja, vendo o caixãozinho dele sendo velado por todos os meus amigos.


NADA nesse sonho faz o MENOR sentido. Eu ainda estou impressionada.

terça-feira, junho 30, 2009


Você, meu amigo, chegou sem querer e sem avisar - eu me lembro bem que não esperava por você naquela manhã de férias há tanto tanto tempo atrás. Você chegou com a energia das crianças e não foi difícil me apaixonar por você. Eu, também criança, mas com preocupações tão maiores que eu, tinha tanto medo de te perder que não deixava ninguém mais passear com você. Você cresceu bem antes de mim, ficou adulto, teve vontades que eu ainda não compreendia. E, da mesma forma, envelheceu mais cedo, cedo demais até. A vida nos deu prazos de validade muito diferentes.
O que eu queria que você soubesse é que você não será esquecido. E que eu sinto muito, muito mesmo, pelas tantos erros que cometi com você. Pelas injustiças, por ter tantas vezes te negado carinho por motivos que nada tinham a ver com você, pela solidão a que te submeti por tanto tempo. Peço seu perdão sabendo que o coração tão cheio de bondade com que a natureza presenteou vocês já me perdoou. Queria que você soubesse que eu não vou esquecer dos meus erros.
E que vou me lembrar das nossas alegrias sempre. De quando você via alguém chorando, e você corria para perto da pessoa e pedia carinho, como quem dissesse: "não chora, eu estou aqui...". Das nossas aventuras inconsequentes pela cidade, dos nossos planos de fugir de casa, dos sustos que você já me passou... De quando eu fiquei sabendo que você estava cego... De quando você foi pro hospital e ficou internado, e eu morava em BH e não podia te visitar. Das bagunças que você fazia, dos móveis que você destruiu, das vezes que mordeu uma de nós. De como você gostava de pão de queijo, de como não comia pão sem manteiga ou biscoito se não fosse recheado de chocolate (e eu só descobri tantos anos depois que chocolate faz mal pra vocês...). De como você arrastava seu pratinho de comida vazio até nós quando estava com fome. De como você avisava quando aparecia algum rato, de como você protegia nossa casa com tanta bravura e obstinação para tão pouco tamanho... De como você tinha tanto medo de foguete, e como eu te acalmava cantando "Across the Univers" para você (eu não sei quando vou conseguir cantar novamente essa música). Eu não vou me esquecer, amigo, eu prometo.
E agora, você precisou ir embora. Eu sei que estava na hora e eu vi o quanto você lutou para ficar, mesmo quando seu corpo já não aguentava mais. Eu também não vou me esquecer de te ver fazendo tanto esforço para respirar, e de como você nos reconheceu quando fomos te visitar. E da dor enorme que eu senti quando percebi que você não iria voltar. Da calma como você se entregou à morte quando não tinha mais jeito. Você a aceitou como se aceita o sono depois de várias noites sem dormir. Alívio, entrega... Eu senti sob minha mão sua respiração cessando aos poucos, eu senti você desistindo depois de tanto lutar. "Dorme, meu amor, está na hora, eu estou aqui com você. Não precisa ter medo, estamos todos aqui..." E seu coraçãozinho se entregando, sem medo, sem desespero, se despedindo... Um pedaço do meu coração foi embora com você, meu amor, meu irmão.
Agora, meu amigo, resta a saudade acima de tudo. Saudade que eu sei que vou sentir por todos os dias da minha vida (que vai ser um pouco mais longa sem você). Saudade de sua rabugice, de te fazer carinho, de ameaçar pegar seu brinquedo. Queria que você soubesse que foi uma honra ter você em nossa família. E que, apesar de minha tão abalável fé e de minha tão grande incerteza sobre tudo, eu ainda guardo uma esperança de te reencontrar um dia. É essa esperança que me dá coragem para encarar o vazio do cotidiano - a morte tem a capacidade de tirar o véu da ilusão que cobre esse vazio - porque, infelizmente, o mundo não pára pra gente enterrar nossos mortos.
Vá em paz, meu irmão. Obrigada por sua lealdade e pelas alegrias que você nos deu. Não te esqueceremos.

domingo, junho 14, 2009

Me lembrei hoje que meu primeiro presente de Natal "caro" (não era caro, mas para uma criança com menos de dez ano era) foi uma máquina fotográfica. Como eu disse, eu tinha menos de dez anos, e me lembro que fui eu que pedi para meus pais. Era uma compactazinha de filme, se nenhuma função especial. Pensando bem, era uma pinhole mais desenvolvida. Ela fazia tudo sozinha, era só apontar e clicar - mas também não fazia nada demais. E eu me lembro que no primeiro dia eu já gastei todo o filme que meu pai havia colocado. Lembro-me que, quando ele levou o filme para revelar, ele me deu um sermão enorme: eu havia fotografado plantas, pássaros, poste. Depois eu fotografei meus primos, um por um. Eu gostava daquilo, me sentia bem. Era instintivo.
Mas foi só há uns quatro anos atrás, durante uma visita a uma exposição com fotografias no Palácio das Artes, que eu pensei: "Olha... eu acho que seria feliz fazendo isso..."

É, eu estava certa. Eu estou sendo bem feliz fazendo isso.

terça-feira, junho 09, 2009

To aprendendo a pensar com imagens e desaprendendo a escrever.

segunda-feira, novembro 03, 2008

Ela...

(Há quase cinco anos, uma amiga - a melhor, provavelmente - escreveu um texto sobre as coisas que ela pensava serem as mais importantes sobre si mesma, aqueles detalhes que quase ninguém sabe, mas quando sabem, você sabe que é importante. Ela me pediu na época que fizesse o mesmo. Já me cobrou várias vezes depois, mas eu nunca consegui escrever, porque sempre me achei instável demais pra pensar em qualquer coisa definitiva sobre meu caráter. Mas não custa tentar.
O texto da Divina: http://deprimer.blogspot.com/2005/07/ela.html
Conforme a solicitação, vou TENTAR seguir o mesmo modelo.)


Herdou por criação a neurose da família. Se preocupa o tempo todo, com todos - é exaustivo. Herdou a neurose, mas rejeita a impiedosa inabilidade para a felicidade que domina a genética das mulheres de sua família. Quer ser feliz.

Acredita no amor, mas tem muito medo de perder - tanto que já perdeu, por desistência, para evitar o sofrimento.

Quis fazer ballet, não tanto para ter a graça e o corpo das bailarinas, mas por admirar a liberdade com o próprio corpo que ela nunca teve. Seu corpo não mudou muito desde que tinha quinze anos, e muitas vezes, parece errado, embora sua cabeça às vezes lembre uma senhora de oitenta anos. Isso já deu nó em sua cabeça: é difícil se reconhecer adulta se o espelho te mostra a mesma menina de seis anos atrás. Mas resolveu não esperar pelas rugas para se sentir adulta, e assumir a contradição que é, porque se sente.

Se apaixona com facilidade por todas as pessoas que conhece. Tem seu coração partido quando lhe viram as costas sem nem ao menos tentar conhece-la. Porque ela gosta de todo mundo a priori, não entende as pessoas que desgostam a primeira vista.

Já teve muito medo de falar "eu te amo", mas não tem mais.

Já acreditou em amor livre, relacionamento aberto, mas é muito insegura e ciumenta.

Tem muito medo de engordar, e gostaria de ter um corpo mais bonito, mas não consegue se exercitar sozinha e não tem dinheiro para academia.

Tem um pavor inexplicável de barata, é incapaz de permanecer no mesmo ambiente e jamais conseguiria reunir forças para matar uma.

Pensa nele todos os dias, e é feliz por te-lo encontrado tão cedo.

Guarda um rancor de vida inteira, e quase ninguém sabe o quanto dói nela a falta do amor da mãe. É sua maior ferida, e jurou pra si mesma que só teria um filho quando tivesse certeza de que o amaria mais que tudo na vida.

Sente muita falta do pai, e evita de pensar nele pra não doer. Ainda não entende por que ele não tem a vida que merece.

Foi casada uma vez, por três anos, embora de maneira "informal". Aprendeu muitas coisas com esse casamento, a principal delas foi a se permitir ser feliz, apesar de tudo.

Não sabe ainda se acredita em Deus, prefere não pensar nele. Mas acredita em reencarnação, extraterrestres e já viu alguns mortos passeando pela casa. Acredita no amor, e por mais que todas as evidências provem o contrário, acredita que o "até que a morte os separe" pode existir, com um pouco de compreensão e paciência.

É friorenta e está aprendendo a nadar aos 21 anos. Não sabe andar de bicicleta, mas gostava de patins. Não acompanhou a evolução do videogame, mas adora Super Nintendo. Gosta de filmes de terror, mas não gosta de ver mutilações.

Ama animais, já tentou adotar cães e gatos de rua escondido dos pais e quando criança sonhava em fugir para o meio do mato levando todos os animais maltratados da cidade. Ainda sonha, às vezes, quando o mundo parece hostil demais.

Ri das mesmas piadas há anos e anos.

Já fez Tae-Kwon-Do, mas nunca quis lutar em campeonatos e fazer carreira no esporte.

Já se apaixonou milhões de vezes, mas em apenas três foi correspondida.

Odeia encontrar conhecidos aleatórios no ônibus e ter que forçar uma conversa sem assunto. Ônibus é lugar de sonhar acordado.

Às vezes gosta da solidão, mas tem medo da solidão da velhice.

É levemente hipocondríaca. Adora ir ao médico, mas por causa da anamnese: adora sentir que tem alguém interessado em sua vida, ainda que por obrigação profissional.

Tem nojo de homens que pensam pelo pau, de cantadas e comentários escrotos. Odeia homens que pensam que qualquer mulher adoraria dar pra eles, ainda mais quando isso não é verdade (na maioria dos casos).

Já teve pneumonia e dengue ao mesmo tempo, e ficou um mês no hospital, junto com as duas irmãs, também com dengue.

É frustrada porque nasceu com a aptidão errada. Tem um ouvido bom, e ama estudar música, mas escolheu artes plásticas para profissão e não sabe desenhar.

Se assusta com facilidade, principalmente com sons, e tem certeza que morre imediatamente do coração se alguém resolver, de brincadeira, puxar seus pés por baixo da cama.

Ainda sonha, todos os dias, em se tornar a mulher que sempre quis ser...
(...)

domingo, setembro 21, 2008

Não, menina, não chore mais. Apesar da chuva que cai lá fora, que sempre escurece um pouco seu coração, não há mais motivo para chorar.

domingo, junho 15, 2008

"e se realmente gostarem? se o toque do outro de repente for bom? bom, a palavra é essa. se o outro for bom para você. se te der vontade de viver. se o cheiro do suor do outro também for bom. se todos os cheiros do corpo do outro forem bons. o pé, no fim do dia. a boca, de manhã cedo. bons, normais, comuns. coisa de gente. cheiros íntimos, secretos. ninguém mais saberia deles se não enfiasse o nariz lá dentro, a língua lá dentro, bem dentro, no fundo das carnes, no meio dos cheiros. e se tudo isso que você acha nojento for exatamente o que chamam de amor? quando você chega no mais íntimo, no tão íntimo, mas tão íntimo que de repente a palavra nojo não tem mais sentido. você também tem cheiros. as pessoas têm cheiros, é natural. os animais cheiram uns aos outros. no rabo. o que é que você queria? rendas brancas imaculadas? será que amor não começa quando nojo, higiene ou qualquer outra dessas palavrinhas, desculpe, você vai rir, qualquer uma dessas palavrinhas burguesas e cristãs não tiver mais nenhum sentido? se tudo isso, se tocar no outro, se não só tolerar e aceitar a merda do outro, mas não dar importância a ela ou até gostar, porque de repente você até pode gostar, sem que isso seja necessariamente uma perversão, se tudo isso for o que chamam de amor. amor no sentido de intimidade, de conhecimento muito, muito fundo. da pobreza e também da nobreza do corpo do outro. do teu próprio corpo que é igual, talvez tragicamente igual. o amor só acontece quando uma pessoa aceita que também é bicho. se amor for a coragem de ser bicho. se amor for a coragem da própria merda. e depois, um instante mais tarde, isso nem sequer será coragem nenhuma, porque deixou de ter importância. o que vale é ter conhecido o corpo de outra pessoa tão intimamente como você só conhece o seu próprio corpo. porque então você se ama também." (caio fernando abreu)

domingo, março 09, 2008

"Love is natural and real but not for such as you and I, my love..."

Me arrumo para sair. Visto minha melhor roupa, passo maquiagem nos olhos. Por alguns instantes até consigo me sentir bem, bonita. Pra que, pra quem? Olho para a porta e ela continua fechada. Olho para mim e eu continuo sozinha. A noite está aberta. Pela janela vejo a rua deserta, sinto o vento frio - algumas outras janelas também observam a noite, testemunham minha solidão. Procuro o espelho novamente, acendo um cigarro: em vão. Você não virá esta noite, como não veio em todas as outras - eu sei. Aqueles acordes tristes continuam soando em meus ouvidos, muito depois que a música terminou: "se você é tão bonita, por que então está por sua conta esta noite?". Eu sei, eu sei de tudo isso há tempos e tempos, desde sempre.
Talvez eu saia para uma volta - por essa hora só sobraram os mendigos e os bêbados, é com eles que me entendo, é só nesses momentos que consigo me ver sem desespero. Há muito tempo eu não ouvia os passos da bailarina no corredor escuro, há muito tempo não via seu vulto rodopiar com leveza e escárnio através do meu espelho trincado. "Onde você esteve?", penso com alguma melancolia. Os inseguros traços da minha maquiagem se dissolvem lentamente na tristeza que umedece meus olhos, borrando meu rosto, desfazendo sem pudor minha esperança. Mas continuo esperando. O céu revela aos poucos, ainda tímido, algumas estrelas silenciosas. O silêncio, o meu silêncio - só consigo pensar que o tempo das estrelas cadentes já passou para mim, e o rastro de sua invisível travessia não é suficiente para iluminar o meu sono.
Me vejo mais só do que nunca diante dessa ausência, e ela é pesada, densa - preenche o quarto como uma névoa fria, turva meus olhos, me enjoa, me embriaga, me escurece: revela apenas um caminho sombrio, o caminho que me leva irremediavelmente para dentro de mim, para as verdades amargas das quais me escondi em sonhos, para dentro da minha vida. Minha vida se impõe sobre minha vontade, soberana, não consigo fugir, não importa o que eu faça.
Já não sobrou muito da máscara que com tanto cuidado vesti para cobrir minhas cicatrizes - aquelas que ninguém viu, que ninguém quer ver. Me lembro que já faz muitos dias que não bebo, e me surpreendo: há muitos anos eu não me confrontava com a lucidez por tanto tempo. "Se eu pudesse ser quem você queria o tempo todo...", canta meu coração vazio para a noite. Mais uma vez não vejo outra saída senão me esconder num falso orgulho e fingir que não vi a ferida enorme que o último passo da bailarina abriu em meu peito - com algum esforço levanto a cabeça e ensaio a alegria, porque o dia já vai chegar e eu também tenho contas a pagar amanhã.
Por um segundo apenas penso no passado, me lembro menina, me vejo só, embalada por canções que só eu ouvia, e me pergunto confusa como foi que cheguei aqui. Sei bem que não há respostas, mas há muitos anos busco uma pergunta dura e seca que o tempo lançou sem piedade contra minha inocência. Não faz sentido. A porta continua fechada.

Deito-me ainda com a roupa que escolhi para sair, para me sentir desejável, para esperar por você. Adormeço já sem lágrimas nos olhos, e apenas as notas distantes de uma guitarra persistem delicadamente na escuridão: "Eu sei que acabou".